quinta-feira

O segredo no jardim

seu olhar 
derrama músicas luminosas 
declama preguiçosas vogais tônicas 
derrapa átonas notas sonoras 
sola em verso branco 

tomado nos braços 
seu corpo tremeria 

mas 
os dizeres ocos dos lábios 
renegam nosso segredo 
que jorra flores 
             e borra olhares 

e você me escapa 
exclamando silenciosas rosas



Publicado no Tertúlia Pão de Queijo no dia 30/07/2011

sábado

Seu último beijo

recitou versos originais de sair para a luz
mas veio vazia
     em vão
          a palavra amor

estava distraída encantada de lábios
e veio vazia
     então
          a vida e seus desmundos
                                terremotos
                                tsunamis
                                meteoros
                                emocionais

meus seus seios a abraçar braços a repelir
sempre
para nunca mais

o que havia de belo e raro já é rarefeito
neste leito sem rio
     no peito
         correm agora lagri’mágoas

mesmo assim
     me desmancho
e sem me pedir
     te perdoo

porque ainda há poesia na saudade de seu último beijo de anjo


   

quinta-feira

Seu primeiro beijo

no cego desejo do só desejo
sem rosto
     sem alma
             asperso

do negrume
    veio sua boca macia
          veio lua cheia de si
               feito fio de olhar à meia luz
como vinho de longa guarda
     aberto
         em perfume

seu primeiro toque já foi carinho
          dançar de rosto coladinho
de tudo do amor que se ilimita em verso
e a ele se resume

de beijo assim não há poesia imune

  

segunda-feira

Se for



                               codinome Romeu

se o amor do meu amor se for
o quanto o quarto esfriar ausência ao redor
sozinho
      e só
      escreverei

se o corpo enfermar
suspirarei dores em belos versos
no devaneio de alguém anotar

e se a cabeça em agonia
          se esquecer
          martírio afora
          em irremediável delírio
estarei afinal plenamente em poesia
porque dela
          nunca
          nunca irei embora

   

sexta-feira

Romântico Amor

Amor Perfeito


há de ser forte 
lagrimar as folhas outonais
na solidão dos galhos

há de ser resistente a cortantes geadas
hibernar para não morrer

e na luz da primavera
há de quebrar a dormência
e rebrotar

para no colo quente do sol
madurar-se terno e doce amor

sábado

Quintal de casa


colo de mãe


onde deixei minas
         aos montes de ferro e enxofre
         que aprisionam corpos retinas
         e elevam almas súplicas ruínas

onde guardei brevidades
         que perfumam feijão quase queimado
         aguam casquinha de angu com açúcar 
         o rapar da raspa de arroz alhos e sais

onde plantei saudades
         na mesa sob a bela parreira de uva e docilidades
         no reinar na goiabeira de galhos nunca mais 
         no tempo que vende vento por tempestades

   

sexta-feira

Poemas de Fernando Campos


Sala de Exibição do Estúdio
Kaiser de Cinema
em Ribeirão Preto
O poema e o filme

As baleias nadam todos os dias da semana.
Os gatos ainda estão pingados em cima do telhado.
Quando olho pra você -- será arte? --,
vejo tinta numa tela de cinema.
Seu rosto tem luz própria, peculiar espelho.
Se notarmos bem, há mais revelações numa gota de orvalho do que ousou nossa vã melancolia. 
As faixas do asfalto o dividem ao meio, projeções e caminhos.
Desarticular o arco exerce menos tensão sobre a flecha e pacifica a superfície do alvo.
Fatos memoráveis ficam apenas na memória.
Atenas não se fez num só dia.
Pense bem e veja fundo na alma do poema




Entrada da Sala
O poema e o filme II


Eram horas vespertinas
e o silêncio ainda persistia na alma do poema.
O projecionista, assaltado pela inquietude da cidade grande, ia e vinha com a bobina entre as mãos,
sem saber se o público compareceria
para a próxima sessão.
O mar, bem perto, continuava a refletir seus azuis
e as baleias musicais, como num enorme aquário,
tentavam a todo custo falar a língua dos humanos.
Os gatos, nos telhados, se transmutavam em gotículas de tinta
oferecendo sua pele de mudez e pergaminho
aos carnavalescos e ritmistas dos novos tempos.
A luz espelhada, indeferida por uma voz convencional,
sentia-se frustrada por frases, gruas e arpões, 
tentando libertar a língua
e mantê-la fora do poder instaurado
por portentosas bolhas intelectuais.
Eram ainda as horas vespertinas
e o silêncio insistia na alma do poema
 até que alguém pudesse falar ou gritar, 
até que o projecionista pudesse ousar qualquer gesto mais amplo,
qualquer reação,
até que uma voz feliniana, quem sabe,
viesse de outras eras, em forma de memória,
socorrer o poema
e descortinar o grande filme, como outrora.
Talvez assim se pudesse redimir Atenas
(a cidade sitiada) e reconstruí-la em outros moldes
para que possamos, enfim
vislumbrar, na alma, a face do poema.