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Sala de Exibição do Estúdio
Kaiser de Cinema
em Ribeirão Preto |
O poema e o filme
As baleias nadam todos os dias da semana.
Os gatos ainda estão pingados em cima do telhado.
Quando olho pra você -- será arte? --,
vejo tinta numa tela de cinema.
Seu rosto tem luz própria, peculiar espelho.
Se notarmos bem, há mais revelações numa gota de orvalho do que ousou nossa vã melancolia.
As faixas do asfalto o dividem ao meio, projeções e caminhos.
Desarticular o arco exerce menos tensão sobre a flecha e pacifica a superfície do alvo.
Fatos memoráveis ficam apenas na memória.
Atenas não se fez num só dia.
Pense bem e veja fundo na alma do poema
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Entrada da Sala |
O poema e o filme II
Eram horas vespertinas
e o silêncio ainda persistia na alma do poema.
O projecionista, assaltado pela inquietude da cidade grande, ia e vinha com a bobina entre as mãos,
sem saber se o público compareceria
para a próxima sessão.
O mar, bem perto, continuava a refletir seus azuis
e as baleias musicais, como num enorme aquário,
tentavam a todo custo falar a língua dos humanos.
Os gatos, nos telhados, se transmutavam em gotículas de tinta
oferecendo sua pele de mudez e pergaminho
aos carnavalescos e ritmistas dos novos tempos.
A luz espelhada, indeferida por uma voz convencional,
sentia-se frustrada por frases, gruas e arpões,
tentando libertar a língua
e mantê-la fora do poder instaurado
por portentosas bolhas intelectuais.
Eram ainda as horas vespertinas
e o silêncio insistia na alma do poema
até que alguém pudesse falar ou gritar,
até que o projecionista pudesse ousar qualquer gesto mais amplo,
qualquer reação,
até que uma voz feliniana, quem sabe,
viesse de outras eras, em forma de memória,
socorrer o poema
e descortinar o grande filme, como outrora.
Talvez assim se pudesse redimir Atenas
(a cidade sitiada) e reconstruí-la em outros moldes
para que possamos, enfim
vislumbrar, na alma, a face do poema.